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A nação como imagem recriada

No 7 de setembro, quando o país costuma repetir a cena de 1822, a conferência de Elisa Reis propôs outro olhar: a independência como plebiscito cotidiano, sempre recriado. Entre memória e esquecimento, a nação surge não como mito fechado, mas como imagem em disputa

Foi preciso alguns segundos até que a voz atravessasse o silêncio. O som falhou na transmissão híbrida — auditório do CBAE e tela do YouTube se entreolhando — como se o próprio tema resistisse a ser ouvido. Falar de nação é sempre um ajuste de frequência: encontrar o tom que permita ouvir e ser ouvido.

Quando o áudio voltou, a conferência convidada do curso Imagens dos Mundos Reais e Imaginários, oferecido no âmbito da Cátedra Fernando de Souza Barros sob a coordenação de Adalberto Vieyra, ganhou corpo. Foi ele quem apresentou a convidada da noite, a socióloga Elisa Reis, que retomou a pergunta de Ernest Renan: o que é, afinal, uma nação? E lembrou sua resposta imortal, dada em 1882: “a nação é um plebiscito de todos os dias.”

Era 8 de setembro de 2022, logo após o bicentenário da Independência. Três anos depois, ao ouvir as palavras novamente, percebe-se que o gesto não era apenas de celebração. Era convite à reflexão sobre uma independência que ainda não se cumpriu. “Estados nacionais não são produtos acabados e imutáveis”, afirmou Elisa. E explicou que a fusão entre pertencimento e autoridade nunca nasce pronta nem se torna definitiva: preserva e transforma, enfrentando os limites, e valendo-se de oportunidades emergentes para assim mobilizar condições favoráveis e fazendo valer valores e escolhas individuais e coletivas. Em outras palavras, a nação é sempre um campo em disputa, uma fotografia em revelação.

Na sua leitura, o Brasil nasceu com o Estado antes da cidadania. A independência foi proclamada sem ruptura, herdeira da ordem colonial. Já no século XX, o estatuto de cidadania ganha expressão máxima na carteira de trabalho, símbolo da inclusão no mercado de trabalho: um passaporte social regulado pelo Estado, que abria direitos apenas para os que tinham um emprego formal. Uma cidadania seletiva, que ao definir dessa forma a inclusão logicamente excluía os demais.

E a memória, lembrou, é sempre uma edição. “É claro que os indígenas são parte da nossa nação, mas nós fomos socializados de forma a não pensar neles como nossos co-cidadãos, a pensar-los  como uma categoria à margem da história.” O mesmo ocorre com os quilombolas, cuja rebeldia histórica foi eclipsada pelo gesto paternal da princesa Isabel. A nação que contamos não é mentira: é uma edição renovada. Um enquadramento que desfoca uns e ilumina outros.

Também os slogans tentaram reduzir o Brasil a uma única moldura: “Ame-o ou deixe-o.” “Brasil acima de tudo.” Fórmulas que prometem unidade, mas na verdade expulsam. Elisa foi enfática: “Um discurso nacionalista que propõe parcialidade é uma contradição em termos.”

Nesse ponto, a ciência entrou em cena. Não como torre de marfim, mas como prática pública. “A ciência que nós produzimos custa algo aos cofres públicos. E nós temos o dever, a obrigação moral de retribuir”, afirmou. Retribuir como? “Mostrando que conhecimento só baseado na vontade não avança, que o futuro depende de compatibilizar vontade, análise objetiva dos limites e oportunidades, e confiança.”

Ciência, portanto, como serviço público de clareza — não acima das pessoas, mas com elas.

Ao final, a imagem da nação se delineava como obra aberta. Memória e esquecimento, autoridade e pertencimento, projeto e oportunidade. Uma nação que precisa ser refeita a cada geração. É nesse sentido que Renan ressoa, mais atual do que nunca: a nação é plebiscito cotidiano.

A conferência terminou, o auditório se dispersou, a transmissão online foi desligada. Mas ficou no ar um compromisso: recriar a imagem da nação com mais luz e menos desfoque, ajustando o contraste à altura da nossa complexidade. Se a independência é mito, cabe desmontá-lo. Se é prática, cabe exercê-la.

Hoje, 7 de setembro de 2025, votamos de novo. E amanhã também.
É assim que um país aprende a dizer seu nome em voz clara. E a se ouvir.

Texto: Wellington Gonçalves — revisão: Elisa Reis.

A crônica faz referência à conferência A Nação como Imagem Recriada, apresentada em uma das sessões do curso Imagens dos Mundos Reais e Imaginários: dos Átomos às Catedrais Passando pela Mente, realizado no âmbito da Cátedra Fernando de Souza Barros, sob a coordenação de Adalberto Vieyra, com a colaboração de Cláudia Melmerstein e Manoel Luis Costa, em 08/09/2022, e transmitido pelo canal do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ no YouTube. Disponível em: Transmissão YouTube – Conferência A Nação como Imagem Recriada