Decifra-me ou te devoro, o feitiço na era das plataformas

A cena é mínima e precisa: uma câmera aberta, o professor em casa, falando direto ao público. Os alunos inscritos acompanham pela sala do Zoom; o restante, pelo YouTube do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Antes de mergulhar no tema, ele se apresenta: professor da Escola de Comunicação da UFRJ, pesquisador dos programas de pós-graduação e nome reconhecido no debate sobre comunicação e capitalismo. “Venho há muito tempo trabalhando com esses temas… e o papel da internet é absurdamente central para o funcionamento do capitalismo que conhecemos”, diz, em tom de quem sabe o terreno que pisa.

A Cátedra Álvaro Vieira Pinto — oferecida pelo Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ (CBAE) — abre com um módulo introdutório: “capitalismo do espetáculo, fetichismo da mercadoria e meios de comunicação”. O objetivo é dar a espinha dorsal teórico-metodológica do curso e apontar as trilhas seguintes; em 31 de maio de 2022, a voz condutora é a de Marcos Dantas.

Dantas começa por uma constatação cotidiana, quase confessionária: “A nossa vida é muito agendada pelo que a gente vê na TV, pelo que ouve no rádio, pelo que está no jornal e, agora, também pelo WhatsApp e pelo Facebook.” O termo de Guy Debord ganha corpo — espetáculo não é “apenas um conjunto de imagens, mas uma relação social mediatizada por imagens” que organiza hábitos, desejos, pausas e reprises do dia. Do barbeiro à sala de estar, “a gente para a atividade para ver uma novela… ou um jogo de futebol.”

Daí ao fetiche, o passo é curto. O professor chama Isleide Arruda Fontenelle para a conversa — e a frase que fisga o leitor: “Não basta tomar refrigerante, tem que ser Coca-Cola… não basta comer hambúrguer, tem que ser McDonald’s.” O nome — a marca — torna-se o objeto de desejo. “A marca parece perverter o próprio fetiche… uma espécie de fetichização do fetiche.” Em linha com Fontenelle, a marca radicaliza o processo: as pessoas deixam de se referir às coisas e passam a se referir às imagens das coisas. No limite, aquilo que antes era atribuído a forças divinas, hoje se chama “mercado” — onipresente e sem rosto.

A marcha do raciocínio encaixa Marx no presente. Se o capital se multiplica pela rotação, convém reduzir ao mínimo os intervalos entre produção, circulação e realização. “Quanto mais esse tempo tende a zero… tanto mais rápida a rotação do capital e maior a massa anual de mais-valor”, recorda Dantas. “Hoje vivemos em um tempo tendendo ao limite de zero — sobretudo nas etapas digitalizadas proporcionadas pela internet.” A informação, que antes acompanhava a mercadoria em seu percurso, agora se antecipa a ela — constrói desejos antes mesmo do produto existir. É esse encurtamento radical que redefine a economia: distâncias se dissolvem e decisões se precipitam em ritmo acelerado.

Para entender quem manda nesse jogo, Dantas aciona a ideia de corporações-rede: empresas cuja inteligência (P&D, marketing, design) pulsa em um núcleo e cuja produção se espalha em cadeias globais, enquanto a marca, por cima de tudo, organiza pertencimentos e preferências. O que se vende, repete ele, é o nome. O consumo, cada vez mais apoiado em signos e estilos de vida, transforma a diferença estética em valor.

É aí que a sociedade do espetáculo encontra sua engenharia econômica. O professor não foge da polêmica que vem da economia política da comunicação: o que a TV vende é audiência. “O que interessa ao anunciante é aquele milhão que está na frente da tela.” Há um trabalho semiótico do público — atenção, tempo, interpretação — que entra no circuito de valorização. Na tradição crítica, esse público é concebido como mercadoria; na prática do mercado, as métricas — como cliques e engajamento — funcionam como moeda. “Mesmo quem discorde da formulação, percebe o deslocamento: no mercado das telas, o olhar coletivo se converte em referência de valor e unidade de troca.”

O fio segue: quando a utilidade de muitos bens passa a ser estética — “gerar emoção, sentimento” — o espetáculo encurta ainda mais o giro: eventos e lançamentos têm vida útil instantânea, projetando a próxima onda enquanto a anterior ainda reverbera. A publicidade ensaia sua paráfrase da arte; o design assume o centro; e o capital, para acelerar consumo e reposição, aposta numa cultura do descartável, como lembram leituras que Dantas convoca no percurso.

No fundo, o diagnóstico mira a transformação do próprio material de trabalho: signos. “A mercadoria é também signo”, lê Dantas, para então recolocar o problema em 2022: em vez de apenas produzir objetos, produzimos projetos, marcas, experiências — informação que, ao ser registrada, processada e comunicada, compõe a base do que ele chama de capitalismo informacional.

Quando ele convoca “transportes e comunicações”, não há figura de linguagem: é chão e é símbolo. De um lado, navios, aviões e rodovias — indústrias cujo valor de uso é o próprio movimento e cuja “mercadoria” se consome no ato, durante o processo. De outro, data centers, telégrafo, rádio, TV e redes, que fazem a informação correr à frente da mercadoria, encurtando o tempo de rotação do capital. Por isso, não são adereços: em parte prolongam o processo produtivo (caso do transporte necessário à realização do valor) e, em parte, compõem funções de circulação que encurtam prazos e coordenam fluxos.

Daí à internet, o passo é lógico: “quanto mais esse tempo se aproxima de zero, tanto mais o capital se valoriza”, lembrou o professor — e a rede é a realização mais aguda desse limite. Hoje, os chamados “jardins murados” — ecossistemas fechados, aparentemente abertos, mas vigiados, regulados e que concentram dados, distribuição e mensuração sob regras próprias — comprimem a infraestrutura material e a mediação simbólica do desejo, como se anulasse o espaço pelo tempo: do anúncio ao clique, do clique à entrega, quase sem fricção.

Chegamos, enfim, às plataformas sociodigitais — não só digitais, insiste, porque “são produtos da sociedade e agem na sociedade”. No ambiente em rede, a compressão do tempo se torna regra operacional; o capital precisa de meios de comunicação para gestão, trânsito financeiro e produção de público. E é pela mesma via que o retorno chega, em forma de dados, cliques, indicadores e vendas.

A cena se fecha, de propósito, na sua televisão ou no seu celular: ao ver o gol brilhante, o olho vai ao lance — mas é a marca que captura o desejo, insinuada na vinheta e explícita nas placas que cercam o território.

No debate que se seguiu, as perguntas do público puxaram o fio para questões de hoje: a propriedade intelectual, cercada pelas plataformas; a vigilância, que busca predizer e modelar comportamentos antes mesmo que surjam; a democracia, atravessada por algoritmos que decidem o que circula. Dantas respondeu sem perder o compasso: “O capital precisa saber o que você vai desejar antes mesmo que você saiba.” O comentário, seco e preciso, funcionou como síntese da noite.

Essa aula — densa, segura, didática — inaugurou o curso “Capitalismo de Plataformas: Financeirização e Apropriação da Cultura, do Conhecimento e das Comunicações”, que se desdobra em diferentes campos e práticas sociais sob olhar crítico sobre como o capital financeiro e as tecnologias digitais reconfiguram produção e consumo.

No Aconteceu do CBAE, cabem as aulas que ressoam para além do instantâneo. Esta ressoa. Porque, na voz ora calma ora enérgica que sobe e desce ao explicar conceitos, Dantas reata dois pontos do nosso tempo: o feitiço (a mercadoria que encobre as relações) e a tela (o espetáculo que organiza a vida), sob a lógica das plataformas (onde ¹o capital realiza seu ideal antigo: fazer do tempo um quase nada). Não é metáfora: é método. E, como feitiço, também é alerta.

Texto: Wellington Gonçalves Revisão: Marcos Dantas

A crônica faz referência à aula Capitalismo do Espetáculo, Fetichismo da Mercadoria e Meios de Comunicação, parte do curso Capitalismo de Plataformas, ministrada em 31/05/2022 e transmitida pelo canal do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ no YouTube. Disponivel em: Transmissão YouTube – Aula Capitalismo do Espetáculo, Fetichismo da Mercadoria e Meios de Comunicação.

¹A formulação “o capital realiza seu ideal antigo: fazer do tempo um quase nada” condensa, em chave ensaística, a tese de Marx sobre a redução do tempo de circulação (cf. O Capital, Livro II). Trata-se de extrapolação crítica: Dantas observa que o tempo tende a zero nas etapas digitalizadas, mas não afirma literalmente a realização desse “ideal”.

A nação como imagem recriada

Foi preciso alguns segundos até que a voz atravessasse o silêncio. O som falhou na transmissão híbrida — auditório do CBAE e tela do YouTube se entreolhando — como se o próprio tema resistisse a ser ouvido. Falar de nação é sempre um ajuste de frequência: encontrar o tom que permita ouvir e ser ouvido.

Quando o áudio voltou, a conferência convidada do curso Imagens dos Mundos Reais e Imaginários, oferecido no âmbito da Cátedra Fernando de Souza Barros sob a coordenação de Adalberto Vieyra, ganhou corpo. Foi ele quem apresentou a convidada da noite, a socióloga Elisa Reis, que retomou a pergunta de Ernest Renan: o que é, afinal, uma nação? E lembrou sua resposta imortal, dada em 1882: “a nação é um plebiscito de todos os dias.”

Era 8 de setembro de 2022, logo após o bicentenário da Independência. Três anos depois, ao ouvir as palavras novamente, percebe-se que o gesto não era apenas de celebração. Era convite à reflexão sobre uma independência que ainda não se cumpriu. “Estados nacionais não são produtos acabados e imutáveis”, afirmou Elisa. E explicou que a fusão entre pertencimento e autoridade nunca nasce pronta nem se torna definitiva: preserva e transforma, enfrentando os limites, e valendo-se de oportunidades emergentes para assim mobilizar condições favoráveis e fazendo valer valores e escolhas individuais e coletivas. Em outras palavras, a nação é sempre um campo em disputa, uma fotografia em revelação.

Na sua leitura, o Brasil nasceu com o Estado antes da cidadania. A independência foi proclamada sem ruptura, herdeira da ordem colonial. Já no século XX, o estatuto de cidadania ganha expressão máxima na carteira de trabalho, símbolo da inclusão no mercado de trabalho: um passaporte social regulado pelo Estado, que abria direitos apenas para os que tinham um emprego formal. Uma cidadania seletiva, que ao definir dessa forma a inclusão logicamente excluía os demais.

E a memória, lembrou, é sempre uma edição. “É claro que os indígenas são parte da nossa nação, mas nós fomos socializados de forma a não pensar neles como nossos co-cidadãos, a pensar-los  como uma categoria à margem da história.” O mesmo ocorre com os quilombolas, cuja rebeldia histórica foi eclipsada pelo gesto paternal da princesa Isabel. A nação que contamos não é mentira: é uma edição renovada. Um enquadramento que desfoca uns e ilumina outros.

Também os slogans tentaram reduzir o Brasil a uma única moldura: “Ame-o ou deixe-o.” “Brasil acima de tudo.” Fórmulas que prometem unidade, mas na verdade expulsam. Elisa foi enfática: “Um discurso nacionalista que propõe parcialidade é uma contradição em termos.”

Nesse ponto, a ciência entrou em cena. Não como torre de marfim, mas como prática pública. “A ciência que nós produzimos custa algo aos cofres públicos. E nós temos o dever, a obrigação moral de retribuir”, afirmou. Retribuir como? “Mostrando que conhecimento só baseado na vontade não avança, que o futuro depende de compatibilizar vontade, análise objetiva dos limites e oportunidades, e confiança.”

Ciência, portanto, como serviço público de clareza — não acima das pessoas, mas com elas.

Ao final, a imagem da nação se delineava como obra aberta. Memória e esquecimento, autoridade e pertencimento, projeto e oportunidade. Uma nação que precisa ser refeita a cada geração. É nesse sentido que Renan ressoa, mais atual do que nunca: a nação é plebiscito cotidiano.

A conferência terminou, o auditório se dispersou, a transmissão online foi desligada. Mas ficou no ar um compromisso: recriar a imagem da nação com mais luz e menos desfoque, ajustando o contraste à altura da nossa complexidade. Se a independência é mito, cabe desmontá-lo. Se é prática, cabe exercê-la.

Hoje, 7 de setembro de 2025, votamos de novo. E amanhã também.
É assim que um país aprende a dizer seu nome em voz clara. E a se ouvir.

Texto: Wellington Gonçalves — revisão: Elisa Reis.

A crônica faz referência à conferência A Nação como Imagem Recriada, apresentada em uma das sessões do curso Imagens dos Mundos Reais e Imaginários: dos Átomos às Catedrais Passando pela Mente, realizado no âmbito da Cátedra Fernando de Souza Barros, sob a coordenação de Adalberto Vieyra, com a colaboração de Cláudia Melmerstein e Manoel Luis Costa, em 08/09/2022, e transmitido pelo canal do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ no YouTube. Disponível em: Transmissão YouTube – Conferência A Nação como Imagem Recriada

Hertha Meyer sou eu quando a memória resiste

Naquela segunda-feira, às cinco da tarde, o canal do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ no YouTube se fez sala escura. A tela acendeu com quatro palavras que soaram como batida na porta da memória: Hertha Meyer sou eu. Mulher, judia, alemã — sua biografia começa na Europa dos anos 30, atravessa a Itália e desemboca no Rio de Janeiro, quando a antiga Universidade do Brasil, hoje UFRJ, erguia espaço para a ciência pública. Foi ali que Hertha encontrou abrigo e transformou a universidade em sua trincheira.

Wanderley de Souza, discípulo e herdeiro acadêmico, não conteve a emoção: “Dona Hertha soube o que é medo. Medo da morte iminente.” A lembrança não fecha um passado; abre três tempos. O dela, nos anos 30, quando o nazismo transformou futuro em fuga. O de 2021, quando a ciência brasileira sangrava sob cortes. O nosso, em 2025, quando recordamos que a memória continua sendo campo de batalha.

No Instituto de Biofísica da UFRJ, Hertha transformou exílio em método. Foi pioneira no cultivo celular e ajudou a desvendar o ciclo do Trypanosoma cruzi — parasita causador da doença de Chagas — a doença do barbeiro. Em termos simples: dentro de uma célula, multiplica-se até romper o tecido e seguir infectando. Seu trabalho repercutiu no mundo todo, embora ela mesma repetisse, com humildade: “Não me chame de doutora, não fiz doutorado.” Tornou-se referência sem precisar de títulos honoríficos.

O filme, porém, não deixa que a cientista esconda a mulher. Débora Foguel, tomada pela emoção, lembrou que Hertha, sem filhos, pedia notícias diárias das crianças dos colegas: “Era nisso que se alegrava.” Tratava Wanderley como filho acadêmico; com Débora, exercia o afeto de uma avó improvisada. Outras cenas completam esse retrato: a bengala nas escadas do Instituto, as férias nos Alpes suíços, o “Nunca mais Alemanha” dito como cicatriz, os chocolates discretamente partilhados.

O debate apenas afinou o que a tela já declarava: memória é disputa. Erika Negreiros disse sem rodeios: “As grandes narrativas históricas nos silenciaram… falar da memória feminina é costurar pedacinhos de histórias fragmentadas.” Recuperar Hertha é enfrentar o peso das estruturas patriarcais que empurraram tantas mulheres ao rodapé da história.

A produção ainda recorda a circulação internacional — como a passagem de Rita Levi-Montalcini pelo Rio, futura Nobel que compartilhou bancada com Hertha. São fios que confirmam: ela pertence a uma história global da ciência, também escrita nos corredores da universidade pública brasileira.

Na altura dos 25 minutos, a pesquisadora Carolina Alves crava a síntese: “Falar da história das mulheres na ciência é disputar narrativas, lutar contra o silenciamento e o apagamento.” A frase atravessa o tempo: em 2021, quando a democracia era contestada por autoritarismos; e em 2025, quando a universidade pública deve permanecer em alerta. É preciso estar atenta e forte, mesmo em novos contextos, para nunca mais esquecer.

O título deixa de ser título e vira espelho: “Hertha Meyer sou eu.” É a cientista exilada; é a professora que acorda cedo; é a estudante de primeira geração universitária; é quem insiste em fazer ciência com brilho nos olhos. Em 2021, o média foi laureado no VII Festival Arquivo em Cartaz – Arquivo Nacional; mas talvez o prêmio maior seja outro: romper o silêncio imposto e devolver às mulheres o lugar que lhes foi negado. Nada está dado: é memória e resistência.

E para deixar-se atravessar pela história, não basta ler aqui. O filme Hertha Meyer sou eu está disponível ao final desta matéria — onde imagens, vozes e silêncios dizem o que esta crônica não tem condições de imprimir.

Texto: Wellington Gonçalves — revisão: Marilia Zaluar Guimarães

A crônica faz referência ao lançamento e debate “Hertha Meyer sou eu”, no âmbito da Cátedra Hertha Meyer de Fronteiras das Biociências, sob a coordenação dos titulares Marilia Zaluar Guimarães e Stevens Rehen, em 26/07/2021, transmitido pelo canal do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ no YouTube. Disponível em: Lançamento e debate “Hertha Meyer sou eu”

HERTHA MEYER SOU EU – Direção: Marília Zaluar Guimarães. Brasil, edição e produção artística da ArtBio, 2021. 28m 35s

O reencontro de três mestres com a memória e o futuro

O espaço estava cheio antes mesmo do início da celebração. Na sala principal, instalada no prédio histórico sede do CBAE da UFRJ, no Flamengo — onde o antigo Hotel Sete de Setembro guarda memórias da cidade — a plateia se ajeitava entre abraços e reencontros; e, a certa altura, já não era possível distinguir onde terminava a emoção e começava a conversa. A inauguração do novo Espaço “Antonio Barros de Castro, Carlos Lessa e Maria da Conceição Tavares” devolveu aos presentes uma sensação rara: a de que a universidade pode ser, ao mesmo tempo, casa de afetos e laboratório de futuro. O ambiente — cuidadosamente restaurado e equipado para atividades híbridas, com sala principal para cerca de 60 pessoas, integrado ao conjunto arquitetônico do CBAE — ajudou a definir o tom da noite: respeitar o passado e operar, com rigor e imaginação, no presente e no porvir.

Foi uma roda de conversa em forma de tributo — e um tributo que soou como aula aberta. Nas primeiras falas, um consenso se formou sem esforço: Castro, Lessa e Conceição não eram apenas grandes economistas; eram mestres, daqueles que atravessam gerações e deslocam bússolas intelectuais. Sentados em torno da mesa em U, os presentes pareciam carregar histórias pessoais consigo; cada lembrança acendia uma centelha do método e da coragem que os três ensinaram a cultivar.

Houve risos, lágrimas discretas e, sobretudo, a sensação de banquete intelectual — expressão que, dita ao microfone, virou mote da noite. “É um banquete”, repetiu-se, como quem reconhece a fartura de ideias e de afeto compartilhados.

Entre os muitos momentos marcantes, alguns fizeram o tempo parar. Ricardo Bielschowsky, aluno e amigo de décadas, ofereceu à plateia um retrato que tocava algo essencial: “Sua amizade foi das riquezas da minha vida; seu conhecimento era imenso e seu afeto, também.” A frase, dita por quem conheceu Antonio Barros de Castro por dentro, condensou o que tantos sentiam ali — a inteligência, sim, mas também a presença humana como força de transformação.

Lavínia Barros de Castro trouxe a casa ao centro do palco e, com a serenidade de quem fala do pai e do intelectual, desarmou qualquer solenidade vazia: “Meu pai odiava a palavra ‘legado’.” A plateia sorriu — e entendeu. Não se tratava, naquele encontro, de empalhar memórias, mas de pôr ideias para trabalhar. “A aposta maior dele era uma sociedade do conhecimento que incluísse todo mundo.” O verbo no presente — apostar — soou natural, como se Castro ainda estivesse ali, apontando brechas e possibilidades.

Do lado de Maria da Conceição Tavares, vieram lembranças com o tempero da convivência e a energia do embate. Franklin Serrano contou, entre risos, que o primeiro telefonema da economista foi “um palavrão”, seguido de um clique na linha; pouco depois, vieram a amizade, as conversas sem concessão e a régua que ela nunca poupava de ninguém. “Conceição tinha alta intolerância a resultados medíocres e ideias mal pensadas”, resumiu. Em duas frases, o espírito da professora: paixão inegociável por pensar o Brasil com ambição e coragem.

Carlos Lessa apareceu nas palavras dos colegas como um tribuno generoso, desses que incendiavam auditórios com humor, erudição e uma brasilidade afetiva — a ponto de Fábio Sá Earp lembrar que, mesmo na molecagem, havia método e uma ética do público. Sua Enciclopédia da Brasilidade, obra de maturidade à qual dedicou anos, foi lembrada como gesto de formação: material precioso e de circulação restrita, concebido para despertar pertencimento e curiosidade. Ali mesmo se aventou a ideia de estudar caminhos para tornar esse acervo mais acessível ao público, em diálogo com a UFRJ e parceiros — uma forma de prolongar, no tempo digital, o impulso pedagógico que movia Lessa.

No fluir das falas, a mediação firme e elegante de Ana Célia Castro deu cadência de crônica coral à noite. Houve lugar para a análise histórica, para o comentário biográfico, para o dado técnico — e para o riso, sempre que a lembrança de sala de aula pedia. Aspásia Camargo afinou o diapasão do tributo com uma convocação: “Precisamos de um projeto de país que una identidade nacional e Estado de bem-estar.” A frase pousou com naturalidade sobre os três homenageados, que sempre recusaram a dicotomia entre crescimento e inclusão.

A certa altura, a conversa retornou a Castro — e Maria Antonieta Leopoldi amarraria a cena com precisão de historiadora: o que fazia de Castro um visionário não era futurologia fácil, mas a capacidade de “ver as tendências estruturais por baixo do ruído” e apostar no progresso técnico como política de Estado. Não por acaso, sua leitura sobre o governo Geisel — pedra de toque para entender escolhas industriais e institucionais do país — seguiu ecoando ali como lente que ainda ilumina dilemas presentes.

No plano afetivo e no plano das ideias, Renato Boschi sublinhou aquilo que a roda demonstrava por si: a universidade é trabalho coletivo, feito de redes de confiança e de debate público, e esse novo espaço do CBAE nasce para abrigar exatamente isso — trânsito entre disciplinas, diálogo intergeracional, enfrentamento de controvérsias. Ao fim, a síntese parecia evidente: celebrar mestres é reafirmar um método de pensamento, não apenas recordar biografias.

A força do encontro esteve também nos pequenos gestos. Um ex-aluno contou como Conceição transformava uma pergunta atravessada em guinada de pesquisa; outro lembrou o humor de Lessa ao explicar um conceito espinhoso com uma história de botequim; uma ex-orientanda de Castro confessou que aprendeu com ele a mirar alto sem perder a delicadeza. Quando Bielschowsky evocou um “quarteto de ouro do estruturalismo” — com o trio e Luiz Carlos Bresser-Pereira — já ninguém precisava de argumento adicional: as trajetórias falavam.

Era impossível, contudo, ignorar o cenário. Um espaço novo dentro de paredes antigas: o contraste entre modernização e memória parecia explicar por que aquela noite tinha algo de rito de passagem. O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (INCT/PPED) restaurou este ambiente do CBAE e o dotou de infraestrutura audiovisual e conexão para encontros híbridos, não como adereço, mas como condição de circulação do pensamento — rodas de conversa, cursos, disciplinas, debates — e como aposta na abertura ao público para além dos muros físicos. O endereço histórico mantém a espessura do tempo; a técnica amplia os alcances da conversa.

No desfecho, Ana Célia agradeceu oradores e público, lembrando que a noite tinha sido também um exercício de cuidado — com a linguagem, com a divergência, com a cidade. “Banquete intelectual”, alguém repetiu outra vez, já quase como bênção. E talvez seja isso que o novo espaço proponha: reunir gente para pensar o Brasil com fome e com método, como fizeram — e fazem, pelos alunos que deixaram — Castro, Lessa e Conceição. Aquela trindade das intensidades que, no léxico dos amigos, virou quase um gênero literário: o ensaio falado, a aula-debate, a provocação generosa.

Se tributos costumam encerrar ciclos, aqui o gesto foi o inverso: abriu-se uma casa. Modernizada por dentro, antiga por fora, popular por vocação, acadêmica por exigência — uma casa para que o pensamento volte a se encontrar com a vida. E para que a memória de três mestres faça aquilo que sempre ensinou: empurrar o tempo para a frente.

Ao apagar das luzes, restava a sensação de que os três voltaram a conversar. Não estavam materialmente, mas em espírito e na vibração das palavras, no riso que ecoou diante das lembranças, no silêncio respeitoso após cada citação. O novo espaço, moderno em suas formas e histórico em sua alma, guarda agora essa presença. Um lugar onde passado e futuro se encontram — e onde três mestres continuam a ensinar que o pensamento crítico é, também, um ato de esperança.

Texto: Wellington Gonçalves

A crônica faz referência ao evento de Inauguração do Espaço Castro, Lessa e Conceição. Disponível em: Transmissão YouTube – Inauguração do Espaço Antonio Barros de Castro, Carlos Lessa e Maria da Conceição Tavares

Esta crônica é uma homenagem da equipe técnico-administrativa do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ e do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento a Antonio Barros de Castro, Carlos Lessa e Maria da Conceição Tavares — e a Ana Célia Castro, cuja arte de reunir pessoas, saberes e gerações, junto à dedicação de sua equipe, tornou este e tantos outros encontros possíveis.

Em reconhecimento, assinam, em nome das equipes que assessoram o CBAE e o INCT-PPED: Bárbara Calabria, Cecilia Salek, Daniel Volchan, Fernando Vasconcelos, Guilherme Aguiar, Letícia Simões, Maristela Santiago de Souza, Míriam Maia, Raquel Bastos, Sean Barbosa, Solange Jorge, Sonia Laís da Rocha, Vera Barradas e Wellington Gonçalves.


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Prédio Histórico – Hotel Sete de Setembro