O Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ (CBAE/UFRJ) vem se somar ao grande pesar pelo incêndio do Museu Nacional, ocorrido no último domingo (02/09), e prestar solidariedade a todos aqueles da comunidade acadêmica da UFRJ que ali atuam, especialmente aos seus servidores – técnicos e professores – e estudantes. O CBAE/UFRJ, órgão parceiro do Museu, e como este, órgão suplementar do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, se ressente em suas atividades cotidianas da perda física do vasto material museológico, arquivístico, de pesquisa, bibliográfico e da estrutura que dava suporte ao trabalho acadêmico ali desenvolvido – perda esta que traz enorme prejuízo ao projeto educacional de transformação da realidade social desmesuradamente desigual desse país em termos escolares e culturais.
O Colégio tem como linha de trabalho a construção da memória sobre a pesquisa acadêmica. Com esta finalidade, um de seus programas, o de Memória dos Movimentos Sociais (Memov), concentrou seu foco de atenção nos materiais acumulados na linha de pesquisa “Campesinato e classes trabalhadoras”, uma fração da diversidade de linhas no interior do Museu Nacional. E tem assim parceria com esta instituição, através de professores, professoras e laboratórios do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/MN) e com a Seção de Memória e Arquivo (SEMEAR/MN), para atividades de cooperação na construção de acervo digital no interior do sistema de arquivos da UFRJ.
Instituição bicentenária e anterior à universidade, criada no Império como museu de história natural, foi durante os períodos seguintes da República que o Museu Nacional se tornou cientificamente cada vez mais respeitável em relação ao conhecimento do seu tempo. Já então nas instalações do antigo Paço Imperial de São Cristóvão, destinado a abrigar o museu antes instalado em outro prédio, sua atividade museológica se vinculou a este palácio histórico. A incorporação à antiga Universidade do Brasil em 1946 propiciou 32 anos depois o início de uma nova etapa do seu prestígio científico. Ao fundar sua primeira pós-graduação em 1968 logo após a reforma universitária que se deu no ano anterior, a de Antropologia Social, ela se tornou uma experiência de referência no interior da UFRJ e para outras universidades no país e reconhecida no plano internacional. Nas décadas seguintes os antigos setores do Museu nas áreas de botânica, zoologia e geociências também converteram seu prestígio anterior sob a forma de programas de pós-graduação que alcançam hoje níveis de excelência. O MN possui seis programas de pós-graduação stricto sensu (Antropologia Social, Arqueologia, Botânica, Linguística e Línguas Indígenas, Zoologia e Geociências) e três cursos de pós-graduação lato sensu (Geologia do Quartenário, Gramática Gerativa e Estudos de Cognição, Línguas Indígenas Brasileiras), além de vários laboratórios e núcleos de pesquisa, confirmando-o como um dos mais importantes centros de pesquisa, ensino, e de atividades de extensão museológicas, arquivísticas e de integração com a educação básica do país.
Essa característica do Museu Nacional, da mais óbvia integração e indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, princípio da atividade educacional universitária pública no Brasil, evidencia a importância da sua existência no seio da UFRJ. Ao contrário das narrativas que querem esvaziar a universidade da referida indissociabilidade, o Museu Nacional não construiu sua importância apesar da UFRJ, mas com a UFRJ, por estar imbuído dos mesmos princípios construídos publicamente para a educação universitária brasileira. Com sua atividade centenária de trabalho de campo, de guarda e de exposição de acervos e de recepção de escolas do ensino fundamental, com o projeto pioneiro de radio educativa pública de um de seus pesquisadores, o Museu Nacional se antecipou de certa forma às atividades de pesquisa e extensão que hoje florescem em vários setores da UFRJ, e que o revigoram de volta. Em particular, consoante com o processo histórico da entrada mais massiva de estudantes das classes populares na universidade nas últimas décadas, e com sua experiência no envolvimento com as práticas educativas dos povos indígenas, o PPGAS/MN introduziu pioneiramente ações afirmativas dirigidas a alunos afrodescendentes e indígenas na pós-graduação da UFRJ, além de sua atenção aos critérios socioeconômicos no atendimento ao corpo discente.
Assim como a universidade em seu conjunto, o Museu Nacional sofreu sempre com orçamentos insuficientes. Relatos e documentos das gestões presentes e passadas do Museu demonstram as diversas iniciativas já tomadas em busca de recursos – junto ao orçamento da educação, da cultura, de emendas parlamentares e fomentos de instituições brasileiras, internacionais e privadas, a grande maioria das vezes frustradas ou insuficientes para a manutenção de sua infraestrutura. Mesmo com recursos extras – para reformas e projetos – é o orçamento anual, sem contingenciamento, que permite que uma universidade ou qualquer órgão público faça sua gestão adequadamente. A UFRJ, como se pode verificar nas notas oficiais da reitoria e de seus gestores ao longo de décadas, sempre teve um orçamento insuficiente para o tamanho e o conjunto das suas atividades. Mas nos últimos quatro anos tem sofrido cortes drásticos, privando o acesso aos recursos básicos à sua atividade, como a regularidade no fornecimento de energia elétrica e da rede de informática, serviços de limpeza e vigilância. É esse contexto que deve ser trazido à tona para a compreensão da tragédia do domingo de 2 de setembro: os recursos para a educação, ciência & tecnologia e cultura são insuficientes e estão sofrendo cada vez mais com os cortes impostos pela Emenda Constitucional 95, conhecida como a do “Teto dos Gastos”, emenda já denunciada pela nossa comunidade acadêmica e por entidades como a Academia Brasileira de Ciência e a SBPC. As tentativas de manipular as informações sobre o funcionamento do orçamento público, desacreditar a democracia universitária na escolha de seus dirigentes, diminuir o papel dos servidores públicos e as iniciativas das gestões universitárias, só podem ser compreendidas como estratégias dos inimigos do projeto educacional público e democrático no país. Projeto este que tem dentre suas metas a transformação da realidade social e o desenvolvimento nacional com respeito à natureza e através da educação e afirmação da riqueza da diversidade cultural.
A memória de um povo, a sistematização de seu conhecimento e sua divulgação ao conjunto da população são imprescindíveis para a produção das condições de possibilidade das transformações em favor da diminuição da absurda desigualdade escolar e cultural da nossa sociedade.
O CBAE de sua parte continuará empenhado em recuperar os documentos, imagens e depoimentos da linha de pesquisa e do setor de memória com que tem parceria no Museu Nacional, de imediato junto à rede de laboratórios de pesquisa de diversas universidades com que colabora e também junto a instituições e entidades de movimentos sociais.
O CBAE se mostra coeso junto aos corpos representativos de todos os setores da UFRJ e de sua reitoria, junto à associação nacional de reitores das universidades federais e de toda a comunidade acadêmica na reconstrução do Museu Nacional. E com eles permanece vigilante quanto a retóricas de mudanças de estruturas jurídicas que disfarçam interesses econômicos e midiáticos nocivos à ciência e à cultura nacionais, assim como a práticas persecutórias de setores de órgãos de controle judiciário neste momento de ataque às universidades públicas. O CBAE é assim parte da corrente de solidariedade surgida em resposta à tragédia, energia essencial ao trabalho de reconstrução material e simbólica do Museu Nacional e ao mesmo tempo de resistência da UFRJ.
Colégio Brasileiro de Altos Estudos,
09 de setembro de 2018
Museu Nacional na manhã após o incêncio. Foto: José Sergio Leite Lopes/CBAE